quarta-feira, 6 de maio de 2015



O crime do comediante




No palco, o célebre cômico Fabiano Novaes tinha por ofício fazer brotar alegria dos corações insensíveis. Ao entrar, aplausos tímidos, deteve-se ao centro, alinhou a gravata, fechou o botão do paletó francês e imitou um sorriso. Na entrada, dois policiais guardavam a porta de vidro que dava acesso ao teatro. Naquela noite, abriu o show atendendo certas recomendações.

− Sabem que animal só existe na Argentina? Não? Orangotango.

Entretanto, as leis o limitavam. Depois de uma apresentação polêmica, recebeu críticas negativas de todo o país. Por sugestão do governador, pessoa íntima, esteve diante de um renomado jurista. Todavia, as palavras do Dr. Álvaro ardiam nos seus ouvidos.

− A lei é severa quanto a ideias pejorativas, escreva sobre dinheiro ou faça trocadilhos.

− Tarefa árdua, vou ter que cortar muito.

− É a ditadura da sisudez, Fabiano.

− Ligaram-me reclamando de uma anedota.

− Não vê? A cada dia torna-se mais restrito.

− Em breve, teremos uma lei proibindo sorriso duvidoso.

Fabiano balançava a cabeça contrariado. Quedou-se amuado por um instante.

− Que quer dizer com inclusão? – perguntou o artista.

− Não ofenda os desamparados.

− Verei o que posso fazer.

− Pilhérias inteligentes – disse o Dr. Álvaro oferecendo um uísque.

Fabiano tomou o caubói e rumou para o teatro perdido em suposições.

Frente a um banco, uma mulher gorda e com uma roupa imunda suplicou-lhe:

− Me dá um dinheiro pra comprar pão?

− A lei me proíbe de me referir a você. Como se adiantasse.

A mulher estendia a mão, incrédula. Fabiano puxou uma nota e entregou com repugnância. No escritório, rabiscou no caderno de pauta: paupérrimo triunfa. Anseios do mundo. Escreveu indeciso. Divagou. Pobre, rico, que dupla. Duo de cantores. Assim, criou outras duplas inclusivas, tais como, criminoso e honesto, ninfomaníaco e casto. Deu uma gargalhada nervosa. Quiçá, leviana e carola, pederasta e ateu. Nestes termos, seria fuzilado. Engendrou trocadilhos, fitou longo tempo um flamingo desenhado na janela oval. Depois, levantou-se e foi ao banho.

Na hora fatídica, o assistente emitiu os informes.

− Fabiano, entra em quinze minutos.

− Estou pronto, balbuciou.

Rememorou a conversa com o advogado, fez cortes necessários, ensaiou e entrou em cena.

− Sabe aquela doença que só tem na Ucrânia?

O público permaneceu indiferente.

− Não? Traumatismo ucraniano.

Na sequência, criminosos e ninfomaníacos passeavam pela imaginação do público. Depois de uma hora de esforços, o comediante percebeu o desastre. Apenas um velho ensandecido gargalhava e aplaudia de pé. Observou a primeira fila: caras fechadas, silêncio. Com o lenço, enxugou o suor que escorria pela testa. Ao lado, o assistente fazia sinal para abortar.

Agradeceu finalizando, saiu e passou reto. No corredor, viu a decepção no rosto da equipe. Entrou na sala, bateu a porta, pegou uma garrafa de uísque e ligou para o advogado. Não atendeu. Meia hora depois, três batidas na porta vermelha interromperam seu acesso de raiva.

− Abra, é a polícia.

Hesitou um instante. Lá fora, dois policiais bigodudos com distintivos polidos.

− Fabiano Novaes? O senhor está preso.

− Preso?

− Estás enquadrado no delito de despertar reações inadequadas nos espectadores.




Algemado, sorriso de satisfação, Fabiano foi levado para o distrito. De lá, ligou para o governador sem sucesso. 
fonte:http://matematicablog.zip.net/contos/ 
Camily Sousa 

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