O crime do comediante
No palco, o célebre cômico Fabiano Novaes tinha por ofício fazer brotar alegria dos corações insensíveis. Ao entrar, aplausos tímidos, deteve-se ao centro, alinhou a gravata, fechou o botão do paletó francês e imitou um sorriso. Na entrada, dois policiais guardavam a porta de vidro que dava acesso ao teatro. Naquela noite, abriu o show atendendo certas recomendações.
− Sabem que animal só existe na Argentina? Não? Orangotango.
Entretanto, as leis o limitavam. Depois de uma apresentação polêmica, recebeu críticas negativas de todo o país. Por sugestão do governador, pessoa íntima, esteve diante de um renomado jurista. Todavia, as palavras do Dr. Álvaro ardiam nos seus ouvidos.
− A lei é severa quanto a ideias pejorativas, escreva sobre dinheiro ou faça trocadilhos.
− Tarefa árdua, vou ter que cortar muito.
− É a ditadura da sisudez, Fabiano.
− Ligaram-me reclamando de uma anedota.
− Não vê? A cada dia torna-se mais restrito.
− Em breve, teremos uma lei proibindo sorriso duvidoso.
Fabiano balançava a cabeça contrariado. Quedou-se amuado por um instante.
− Que quer dizer com inclusão? – perguntou o artista.
− Não ofenda os desamparados.
− Verei o que posso fazer.
− Pilhérias inteligentes – disse o Dr. Álvaro oferecendo um uísque.
Fabiano tomou o caubói e rumou para o teatro perdido em suposições.
Frente a um banco, uma mulher gorda e com uma roupa imunda suplicou-lhe:
− Me dá um dinheiro pra comprar pão?
− A lei me proíbe de me referir a você. Como se adiantasse.
A mulher estendia a mão, incrédula. Fabiano puxou uma nota e entregou com repugnância. No escritório, rabiscou no caderno de pauta: paupérrimo triunfa. Anseios do mundo. Escreveu indeciso. Divagou. Pobre, rico, que dupla. Duo de cantores. Assim, criou outras duplas inclusivas, tais como, criminoso e honesto, ninfomaníaco e casto. Deu uma gargalhada nervosa. Quiçá, leviana e carola, pederasta e ateu. Nestes termos, seria fuzilado. Engendrou trocadilhos, fitou longo tempo um flamingo desenhado na janela oval. Depois, levantou-se e foi ao banho.
Na hora fatídica, o assistente emitiu os informes.
− Fabiano, entra em quinze minutos.
− Estou pronto, balbuciou.
Rememorou a conversa com o advogado, fez cortes necessários, ensaiou e entrou em cena.
− Sabe aquela doença que só tem na Ucrânia?
O público permaneceu indiferente.
− Não? Traumatismo ucraniano.
Na sequência, criminosos e ninfomaníacos passeavam pela imaginação do público. Depois de uma hora de esforços, o comediante percebeu o desastre. Apenas um velho ensandecido gargalhava e aplaudia de pé. Observou a primeira fila: caras fechadas, silêncio. Com o lenço, enxugou o suor que escorria pela testa. Ao lado, o assistente fazia sinal para abortar.
Agradeceu finalizando, saiu e passou reto. No corredor, viu a decepção no rosto da equipe. Entrou na sala, bateu a porta, pegou uma garrafa de uísque e ligou para o advogado. Não atendeu. Meia hora depois, três batidas na porta vermelha interromperam seu acesso de raiva.
− Abra, é a polícia.
Hesitou um instante. Lá fora, dois policiais bigodudos com distintivos polidos.
− Fabiano Novaes? O senhor está preso.
− Preso?
− Estás enquadrado no delito de despertar reações inadequadas nos espectadores.
Algemado, sorriso de satisfação, Fabiano foi levado para o distrito. De lá, ligou para o governador sem sucesso.
fonte:http://matematicablog.zip.net/contos/
Camily Sousa
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